Quem sou eu

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Vou mostrando como sou, e vou sendo como posso. Insta: @danielrprj

8 de junho de 2025

Véu de Noiva

 

Vesti o espelho do silêncio das minhas,
minha mãe em suspiro, minha avó em costura.
Cada renda, um segredo que caminha
no ventre do tempo, em alma pura.

O véu caiu como bênção e promessa,
coroa de vento, rito de flor.
Ali, fui semente e fui colheita,
no altar dos dias, desabrochei em cor.

Minhas mãos tremiam feito as delas,
no fio da espera, no nó do sim.
E ao andar, senti que todas me seguiam 
mulheres em mim, vestidas de mim.

Não fui noiva, fui constelação contida,
uma lua inteira em gesto breve.
Pela primeira vez, fui minha vida,
tão de volta e num véu tão leve … 

— Daniel André

21 de maio de 2025

Ainda Somos Bons

 











Perdemos o caminho cedo,
num mapa rabiscado por mãos
que não eram nossas.
Nascemos com a bússola girando feito louca,
e um coração grande demais
pra caber nesse mundo que exige medidas exatas.
Vivemos tropeçando no peito.
Ele pesa. Ele pulsa fora do compasso.
Nosso passo é hesitante,
feito dança ensaiada sem música.
Queremos acertar,
mas pisamos torto
e às vezes esmagamos flores
achando que eram pedras.
 
Guardamos culpas em bolsos fundos.
Algumas são fósseis.
Outras, presentes de família.
Carregamos tudo como herança
não reclamada, e sofremos séculos em silêncio
aquele tipo de dor que se disfarça de “tá tudo bem”.
Somos confusos.
Exageradamente humanos.
Com excesso de sentir
e pouco talento pra traduzir.
Amamos errado,
choramos calados,
e sorrimos com a alma em curativo,
só pra ninguém notar que a esperança
anda costurada com linha fina e um fiapo de fé.
 
Mas veja, além da bagunça,
do caos, da desculpa engasgada.
Há um coração aqui. Inteiro no seu erro.
Fiel na sua falha. Ainda batendo por todos,
mesmo quando o mundo diz não.
Mesmo quando nós dizemos sim
e o resto se parte.
Sim, ainda batemos.
Mesmo feridos, ainda amamos.
Mesmo errando, ainda somos bons.

— Daniel André 

17 de maio de 2025

Lótus

 

No lodo escuro, onde o pântano é rei,
Desponta a lótus, pura, imaculada,
Sua beleza em meio à lama é lei,
Flor que resiste à dor enraizada.

Assim também a alma iluminada
Se ergue firme em trevas de maré,
Não se corrompe, mesmo encharcada,
Pois guarda a luz onde a esperança é fé.

Que importa o fel, a dor, a noite fria,
Se há no peito um sol que não se apaga?
O coração, em paz, floresce o dia.

Tal como a flor que a podridão não traga,
Quem ama a vida em sua poesia
Transcende o caos e nunca se propaga.


— Daniel André

11 de maio de 2025

Mães de Todas as Espécies

 

I
A leoa não pensa.
Ela protege.
A coruja não duvida.
Ela vigia.
A elefanta lembra.
Sempre. Até das dores.
A loba não pede licença.
Ela defende com dentes.


II
A gata finge desdém.
Mas morre por dentro se o filhote mia longe.
A baleia canta
canções que ninguém entende
só o filho.
A égua espera.
Mesmo no galope.
O instinto é feroz,
mas tem cheiro de leite.


III
Ser mãe é morrer em paz
cada dia, só pra ver o filho viver inteiro.
Não é só humano.
É selvagem.
É universal.
É sagrado sem religião.
Mãe não é papel.
É pulsação.


IV
Ela sente o perigo
antes que ele aconteça.
Ela ama antes de ver.
E continua amando,
mesmo sem entender.
Mãe é o começo
que nunca termina.
A todas elas, de todas as espécies:
Vocês são o elo.
O milagre com garras.
A ternura com dentes.


— Daniel André

7 de maio de 2025

Amor em Grãos












No fogão, ele canta, amarelo e fiel,
O cuscuz se levanta, mais quente que o céu.
Não tem luxo, nem ouro, nem prato de rei,
Mas tem gosto de afeto, do jeito que amei.

Com manteiga escorrendo, um café do lado,
É banquete de rei, num trono improvisado.
Quem precisa de vinho, de queijo importado,
Se o amor tá na massa, no milho ralado?

Cada grão um poema, uma rima que brilha,
Mais sincero que janta em família.
É amor que não grita, que não cobra flor,
Mas que aquece a barriga — e também o amor.

Então brinde ao cuscuz, rei da calmaria,
que ensina que amor é calor e farinha.
Se for pra sentir, que não seja com medo,
mas com cuscuz quentinho... e um cafuné cedo.

— Daniel André

3 de maio de 2025

P.S.: Te Vi Fazendo Café

 

Amor,

era só a sua blusa,
mas no teu corpo,
virou domingo.

Fiquei na cama te olhando,
com a vitrola tocando nossa velha canção,
e o cheiro do café
te anunciando melhor que qualquer sol.

Nem sei se foi o jeito
de existir tão sem esforço,
ou só o teu cabelo bagunçado —
mas me apaixonei de novo.
Acontece sempre.

Volta com duas xícaras?
(Eu tô ficando pra sempre, se der.)

 Teu.


— Daniel André.

1 de maio de 2025

O Trabalhador Invisível

 

Quem levanta cedo e sua
Sem ter nome no jornal
É quem move esse Brasil
Com esforço colossal.
Mas a elite do atraso
Só enxerga o capital.

O gari limpa a cidade,
Tão herói quanto soldado,
Mas recebe em troca o quê?
Um salário rebaixado.
Enquanto o luxo desdenha,
Ele é sempre ignorado.

No shopping, tem trabalhador
Preso em dia promocional,
Nem domingo tem sossego,
Nem direito ao natal.
O descanso é só promessa
Num contrato desigual.

Garçom serve mesa rica
Com sorriso no olhar,
Mas por dentro vai calado
Com vontade de gritar.
Pois nem sempre o bom serviço
Faz alguém melhorar.

E a escala 6 por 1
Já virou prisão moderna.
“Um dia de descanso!”
Mas só na ponta da perna.
É promessa que se quebra
Quando o patrão já governa.

E lá no fundo da história
Ecoa a voz de um rapaz:
Chamado Karl Marx na lida,
Lutando por algo eficaz:
Que o trabalhador tenha
Liberdade, pão e paz.

Pois é quem trabalha duro
Que mantém a roda viva.
Não é banqueiro em gravata,
Nem promessa ilusiva.
É suor que move o mundo,
É a base mais ativa!


—  Daniel André

27 de abril de 2025

Vai, Francisco ...

 

Vai, Francisco,
pastor dos pobres
com tuas sandálias de pó,
e o vento das ruas na alma.

Carregas no peito
as chagas esquecidas,
os nomes sussurrados pelo chão.

Disseste:
“A Igreja não é muro — é travessia.”
Foste ao encontro dos sem-teto,
dos sem-voz, e ali teu abraço virou altar
- a estrutura da igreja deve se renovar.

 Quando disseste:
“Quem sou eu para julgar?”,
o céu rachou de esperança.

Chamaram-te herege — foste chama.
Chamaram-te fraco — foste rocha.
Erguiste tua voz contra o ódio,
o medo, as guerras surdas.

Mostraste que Deus mora
na lágrima dividida,
no pão partido,
no olhar que acolhe sem perguntas.
A morte não te apaga — te espalha.
No vento, nas vielas, nos corações
que ainda sangram por justiça.

Vai, Francisco.
Nos deixaste mais rebeldes,
mais ternos,
mais vivos.

Amém,
Sawabona,
Salaam Alaikum,
Namastê,
Shalom,
Aloha,
Konnichiwa
e Axé

—  Daniel André

24 de abril de 2025

Entre o Canto e a Calma

 

O terreno ao lado da minha casa
é selva em oração.
Silenciosa.

Árvores cheias de memória.
Raízes que sabem mais que a gente.

Hoje o céu acordou cinza.
Suave.
Feriado de nuvens.
Sem pressa.

Os pássaros cantam.
Mas não pra festa.
Cantam pra paz.

A chuva não despenca.
Ela cai devagar.
Sussurra na folha.
No vidro.

A umidade afaga.
Como quem diz:
“Fica. Descansa. Respira.”

Não ouço carros.
Nem relógios.
Só o tempo…
Desfazendo-se em gotas.

Sento à janela.
Caneca quente nas mãos.
Vejo o mato se curvar.
Em reverência.

Cada folha é um monge.
Cada galho, um verso.
Em silêncio.

Neste dia nublado, sou semente.
Neste feriado, sou chão.
A vida, por um instante,
não cobra nada.

Só recolhimento.

E assim fico:
Entre a mata e a alma.
Entre o canto e a calma.
Ouvindo a existência
chover devagar.

—  Daniel André

22 de abril de 2025

O Nome do Mal

 

Não é o altar que queima,
é a mão que acende o fogo.
Não é o livro que fere,
é a voz que distorce o logo.

A pedra nunca escolhe o alvo,
é o braço que busca ferir.
E a cruz, por si, não pesa —
é o ódio que insiste em erguir.

Religião não cria monstros,
não sem um monstro pra vesti-la.
A fé não mata ninguém,
mas o fanático — esse sim, desfila.

Uns culpam os templos, os santos,
os deuses de cada esquina.
Mas a maldade está no homem,
no silêncio da sua rotina.

A Bíblia não apunhala,
o Alcorão não arma emboscada.
É o coração que apodrece,
e procura desculpa sagrada.

Quantos mártires tombaram
por ideias que nunca pregaram?
Quantos inocentes silenciaram
em nome dos que berravam?

O problema não é o credo,
é o ego que quer ser rei.
Não é Deus que julga o mundo,
é o homem que pensa que é lei.

E assim seguimos, em guerras santas,
com almas tão longe da luz…
Enquanto o bem morre calado,
e a maldade põe nome de Jesus.

—  Daniel André

20 de abril de 2025

As Pedras no Rio

 

Quando eu era menino,
juntava as pedras na beira do rio
como quem coleciona certezas pequenas.
Empilhava-as, cuidadoso,
em torres que desafiavam o instante,
sonhos molhados pelas águas do tempo.

O rio, cúmplice e paciente,
beijava meus pés com suas histórias antigas.
Eu não sabia, mas ele sabia:
aquele brincar era rito,
aquelas pedras, promessas.

Cada empilhamento um desejo —
que o mundo não desmoronasse,
que o tempo fosse lento,
que a correnteza não levasse tudo.

Mas o rio não para,
e os meninos crescem.
As pedras rolam, os sonhos mudam de forma,
e a margem vira lembrança.

Hoje, volto às águas
não mais pra empilhar pedras,
mas pra entender por que eu fazia isso.
E percebo — com uma paz molhada nos olhos —
que aquele menino construiu mais
do que torres de pedra.

Ele ergueu memória.
Ergueu poesia.
E plantou em mim a saudade,
essa pedra que o tempo nunca leva.

—  Daniel André

18 de abril de 2025

Bolero para Dois


 










Eu estava em minha sala.
Noite de lua cheia, de sexta-feira 
daquelas em que as calçadas viram passarelas
de caçadores e presas bem vestidas,
onde os sorrisos piscam como faróis
e os boleros, ah, esses boleros...
beijam os lábios da cidade,
mas só ela decide quem irá beijar.

Enquanto isso, eu 
com meu copo meio cheio
ou talvez meio indiferente —
dançava com as sombras da estante.

Meus discos, soldados do tempo,
ronronavam melodias como gatos de estimação tristes,
sabendo que lá fora o mundo era barulhento demais
para a minha solidão bem afinada.

A lua, minha vizinha de olhar antigo,
espionava pela janela com aquela cara de quem viu
todos os romances acabarem antes do segundo ato.

Fizemos um brinde silencioso:
ela com sua luz pálida, eu com meu uísque morno.
Não houve promessas, nem suspiros.
Só a compreensão de que,
na grande pista de dança do cosmos,
às vezes o melhor par
é a ausência com quem você já se acostumou a dançar.


— Daniel André

16 de abril de 2025

Receita de um Caos Controlado

 

Fui no traficante — jaleco branco, olhar vazio,
“Psiquiatra”,— nome chique pra esse tipo de desvio.
Peguei a droga em cinco minutos cravados,
Sem perguntas, sem pudores, só receituários assinados.
 
"Ansiedade, é? Normal nos tempos modernos."
Disse ele, com o tédio de mil invernos.
Me receitou paz em cápsulas, sono em miligramas,
Um ticket direto pras almas que se calam.
 
A sociedade? Um hospício com wi-fi e salário.
Sorrisos filtrados, corações no armário.
Todo mundo fingindo que tá tudo ok,
Com Lexotan no bolso e Rivotril no café.
 
Vivemos entupidos de "cura" prescrita,
Mas ninguém lembra mais como é viver à vista.
Anestesiados, drogados de forma elegante,
Com a bênção do CRM e a farmácia vibrante.
 
Então brinde, cidadão, com seu copo de apatia,
Você venceu o dia... ou ao menos a insônia da noite fria.
Só não se esqueça, no seu transe sereno:
O verdadeiro doente é o sistema, e não o veneno.
 
- Daniel André

12 de abril de 2025

Alma de Água


Minha alma
escorre mansa
como rio que se esqueceu da pressa.

Canta um pássaro,
e o tempo se deita sobre as pedras,
escutando.

As cachoeiras murmuram segredos
em línguas líquidas,
que só o silêncio compreende.

Chove.
E cada gota cai
como se soubesse exatamente onde pertencer.

O petricor sobe do chão
como incenso da terra,
perfume da memória vegetal do mundo.

Entre pedrinhas e espelhos d’água,
sou leve.
Sou líquida.
Sou quase vento —
mas com raízes.

E na ciranda de folhas no céu,
descubro que a paz
que tem som de riacho
e cheiro de depois da chuva.

Daniel André

8 de abril de 2025

Vale Tudo















Ser honesto no Brasil
é pisar em anzol descalço,
é dar bom dia sorrindo
e ouvir de volta: “seu falso”.

É ver o ladrão engravatado
na capa da revista semanal,
enquanto o pobre é fichado
por roubar pão no sinal.

É voto que some no ar,
é verba que vaza da mesa,
é promessa feita em palanque
com sabor de sobremesa.

A escola com teto rachado,
mas no Senado tem buffet.
O povo jejua esperança,
os ricos brindam com Moët.

Dizem que tudo é “esforço”,
mas o jogo já vem marcado.
Quem nasce longe do berço
vira herói por ter lutado.

Vale a pena? Vale a alma.
Vale a luta com firmeza.
Vale o pouco que se tem
e o muito da nobreza.

Ser honesto virou afronta,
num país de ilusão e eleição.
Mas quem dorme em paz consigo
não precisa de perdão.

Não há cargo, não há grana,
nem medalha de patrão,
que valha mais que a coragem
de quem vive na contramão.

Mesmo cansado,
mesmo calado,
ainda é luta,
e é missão.

Daniel André

12 de fevereiro de 2025

Trilhas do Tempo

Caminhei só, por trilhas do tempo,
entre folhas caídas num outono calado.
Sombra e luz se alternavam no passo,
enquanto a vida, silenciosa, passava.

Nos olhos, brilhos de promessas antigas,
abraços e sorrisos que o tempo levou.
O que não foi — como estrelas distantes —
ainda brilha, sob o véu do que restou.

A juventude é um rio em correnteza,
desce veloz pelas encostas dos dias.
A velhice vem com seu manto tranquilo,
tecendo sabedoria nas dobras da vida.

As flores murcham, as chances também,
mas cada perda ensina o valor do caminho.
E as memórias, como vinho repousado,
guardam o gosto doce do que foi carinho.

Mesmo que o amanhã traga incerteza e dor,
há beleza em lembrar, em sentir, em ter sido.
Porque no fim, a escolha sempre foi o amor —
o que carregamos, mesmo quando tudo é ido.

Daniel André


Uma recordação com essa linda canção, que traz a lembrança da minha infância.

6 de janeiro de 2025

Aquele disco

 


Um belo dia, resolvi mudar
— sussurrou Rita Lee pelas minhas engenharias auditivas —
trocando o “o que será que vão pensar de mim?”
por um glorioso: “foda-se, a vida é minha!”
E vou vivê-la, inteira, sem rodar em loop de censura alheia.

Disseram que gato tem sete vidas.
Pois eu? Já dancei umas quinze.
E vou pra mais,
sem desperdiçar nenhuma em opiniões com cheiro de naftalina.

Preso neste corpo de vinil iluminado,
como faixa esquecida num lado B que te arrebata,
sigo:
planando no som que me arranca do chão
pra dançar com anjos sambistas de calça boca-de-sino.

É suor mergulhado em batidas,
é banho de ousadia sem enxágue,
misturado às vozes bêbadas de alegria genuína.
Todos aqueles artistas loucos —
esses orixás da farra e da dor —
sabiam bem:
pra letra repetida, seja em tristeza ou fantasia,
não há remédio melhor que virar o disco.

Daniel André