A cidade de pernas abertas
deixa correr as horas varridas,
e é no silêncio da madrugada
que penetro sua limpeza despida.
As ruas estão nuas, despojadas,
sem vitrines, sem vaidades,
sem vozes que vendem certezas,
sem disfarces nem caridades.
Na frieza de cada beco,
lâmpadas se afogam na neblina.
Um corpo estendido sobre jornal,
enquanto na esquina —
um cartaz anuncia
uma peça que ninguém assiste.
Travestis e prostitutas, bem vestidos,
guerreiam o ponto, o tempo, os desejos,
fazem da calçada sua trincheira
até o sol nascer,
e a hipocrisia cobrir o dia.
Na praça, uma santa vigia
cercada de velas e fitas de fé —
umbanda, catolicismo, esperança.
Ali, todos são um só,
sem partido, sexo ou propaganda.
Os prédios antigos fingem modernidade,
mas denunciam histórias nas rachaduras.
E eu, vigia da noite, observo tudo —
porque nas ruas cruas,
o presente se mascara de passado
com uma elegância
que só a decadência sustenta.
Daniel André