Quem sou eu

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Vou mostrando como sou, e vou sendo como posso. Insta: @danielrprj

27 de junho de 2022

Em sociedade

 

Chega a roçar o instinto,
essa negação da própria essência —
um esforço quase automático
de caber em moldes impostos,
em mundos projetados por outros.
Muitos já esqueceram o próprio poder
ou talvez nunca tenham descoberto.

O negro,
um povo um dia acorrentado,
hoje nega a história
e veste a pele do opressor —
sem perceber que a prisão
ainda é racial,
mas agora vem disfarçada de aceitação.

O homem gay,
para sobreviver à norma,
encena um papel hétero,
esconde o amor e
julga quem ousa ser livre —
com medo de ver no outro
o reflexo do que nega em si mesmo.

A mulher,
submissa por tradição,
ainda carrega nos gestos
os resquícios do patriarcado —
sem notar que o machismo
não ficou no passado,
apenas mudou de roupa.

O pobre,
condicionado ao silêncio,
não questiona a lógica da escassez
nem o teatro da democracia
que se encena para os ricos
enquanto se fecha a cortina
para quem vive na plateia vazia.

A religião,
que um dia quis religar,
hoje constrói muros,
divide,
luta por território como império em guerra.
O que era fé,
virou fronteira.
O que era valor,
virou arma.

Daniel André

26 de junho de 2022

O aroma da saudade

 

Amadeirado o cheiro da ausência,
beijos perdidos num véu de calor.
Deslizam em lábios de pura essência,
guardando no sopro o eco do amor.

Montes de flores com tons desiguais,
um homem sozinho sem chão nem rotina.
Plantava afetos em campos surreais,
regando memórias com luz cristalina.

Baús infinitos de sonhos guardados,
com trancas partidas em tarde vazia.
Ecos vazavam de cantos fechados,
pintando loucuras no céu do dia.

Mais um rabisco no cosmos sem mal,
gritava um homem, num tom visceral:
"Se tudo é loucura num plano ideal,
então... o que é mesmo ser normal?"

Daniel André

16 de junho de 2022

Crônica gramatical

 

Atropelado
por um objeto direto em alta velocidade,
fui levado ao hospital de Gramática Geral,
em estado quase pretérito mais-que-perfeito.

Na triagem, atribuíram-me
um número cardinal —
não que eu me sentisse inteiro.

O médico, Dr. Advérbio,
chegou apressadamente (como não poderia deixar de ser),
e com grande intensidade
retirou agulhas de exclamação
que perfuravam meu corpo com ênfase.

É um jovem moço! — cochicharam as enfermeiras,
com concordância verbal e fé nominal.
Reuniram orações coordenadas,
subordinadas a um superlativo absoluto,
e ali, com verbo no peito,
meu tempo verbal voltou a conjugar-se.

Vestiram-me com adjetivos de alfaiataria fina,
alimentaram-me com substantivos simples,
mas nutritivos — e concretos, claro.
Foi então que, ao abrir os olhos,
comecei a fonéticar com dificuldade lírica.

Recebi aplausos dos pronomes do caso reto,
emocionados, fazendo uma análise sintática
da minha voz passiva —
que, finalmente,
encontrara seu sujeito.

Daniel André

2 de junho de 2022

Âmbar

 

Ah… o teu abraço.
Nunca quis que fosse apenas um instante —
quis que fosse abrigo,
tempo suspenso,
um refúgio onde o mundo não entra.

Se eu pudesse,
recortaria esse momento com as mãos
e o emolduraria com carinho,
pra deixá-lo pendurado no tempo
como um relicário nosso:
só nós dois,
no centro do universo.

Estrelas incandescentes nascem
todas as vezes que nos permitimos esse calor.
E ali, no silêncio entre corações,
explode o esplendor do nosso amor —
puro, imenso, eterno.

Os olhos da primavera espiaram, curiosos,
testemunharam o afeto em flor,
e ficaram imóveis,
presos no âmbar de uma memória viva,
como se a natureza soubesse
que aquele instante
era digno de um colar
feito de beleza e ternura.

Daniel André