Quem sou eu

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Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil
Vou mostrando como sou, e vou sendo como posso. Insta: @danielrprj

27 de abril de 2025

Vai, Francisco ...

 


Vai, Francisco,
pastor dos pobres e do pó,
com o vento das ruas na alma cansada.
Carregas no peito as chagas do mundo,
os nomes que a terra sussurra calada.

Disseste: “A Igreja não é muro, é travessia.”
E foste, sem medo, aos sem-voz, aos sem-teto.
Ali, teu abraço virou altar vivo,
e tua fé, ponte sobre o concreto.
A estrutura tremeu, clamando por renovação.

“Quem sou eu para julgar?”, murmuraste,
e o céu, surpreso, chorou de esperança.
Chamaram-te fraco, foste rocha.
Chamaram-te herege, foste luz.
Erguiste tua voz contra as guerras surdas,
contra o medo que cala e conduz.

Mostraste que Deus habita
na lágrima partilhada, no pão dividido,
no olhar que acolhe sem perguntar.
A morte não te apaga, te espalha.
Vai, Francisco, ecoa nos ventos,
nas vielas, nos que ousam amar.


—  Daniel André

24 de abril de 2025

Entre o Canto e a Calma

 

O terreno ao lado da minha casa
é selva em oração.
Silenciosa.

Árvores cheias de memória.
Raízes que sabem mais que a gente.

Hoje o céu acordou cinza.
Suave.
Feriado de nuvens.
Sem pressa.

Os pássaros cantam.
Mas não pra festa.
Cantam pra paz.

A chuva não despenca.
Ela cai devagar.
Sussurra na folha.
No vidro.

A umidade afaga.
Como quem diz:
“Fica. Descansa. Respira.”

Não ouço carros.
Nem relógios.
Só o tempo…
Desfazendo-se em gotas.

Sento à janela.
Caneca quente nas mãos.
Vejo o mato se curvar.
Em reverência.

Cada folha é um monge.
Cada galho, um verso.
Em silêncio.

Neste dia nublado, sou semente.
Neste feriado, sou chão.
A vida, por um instante,
não cobra nada.

Só recolhimento.

E assim fico:
Entre a mata e a alma.
Entre o canto e a calma.
Ouvindo a existência
chover devagar.

—  Daniel André

22 de abril de 2025

O Nome do Mal

 

Não é o altar que queima,
é a mão que acende o fogo.
Não é o livro que fere,
é a voz que distorce o logo.

A pedra nunca escolhe o alvo,
é o braço que busca ferir.
E a cruz, por si, não pesa 
é o ódio que insiste em erguir.

Religião não cria monstros,
não sem um monstro pra vesti-la.
A fé não mata ninguém,
mas o fanático, esse sim, desfila.

Uns culpam os templos, os santos,
os deuses de cada esquina.
Mas a maldade está no homem,
no silêncio da sua rotina.

A Bíblia não apunhala,
o Alcorão não arma emboscada.
É o coração que apodrece,
e procura desculpa sagrada.

Quantos mártires tombaram
por ideias que nunca pregaram?
Quantos inocentes silenciaram
em nome dos que berravam?

O problema não é o credo,
é o ego que quer ser rei.
Não é Deus que julga o mundo,
é o homem que pensa que é lei.

E assim seguimos, em guerras santas,
com almas tão longe da luz…
Enquanto o bem morre calado,
e a maldade põe nome de Jesus.

—  Daniel André

20 de abril de 2025

As Pedras no Rio

 

Quando eu era menino,
juntava as pedras na beira do rio
como quem coleciona certezas pequenas.
Empilhava-as, cuidadoso,
em torres que desafiavam o instante,
sonhos molhados pelas águas do tempo.

O rio, cúmplice e paciente,
beijava meus pés com suas histórias antigas.
Eu não sabia, mas ele sabia:
aquele brincar era rito,
aquelas pedras, promessas.

Cada empilhamento um desejo 
que o mundo não desmoronasse,
que o tempo fosse lento,
que a correnteza não levasse tudo.

Mas o rio não para,
e os meninos crescem.
As pedras rolam, os sonhos mudam de forma,
e a margem vira lembrança.

Hoje, volto às águas
não mais pra empilhar pedras,
mas pra entender por que eu fazia isso.
E percebo, com uma paz molhada nos olhos 
que aquele menino construiu mais
do que torres de pedra.

Ele ergueu memória.
Ergueu poesia.
E plantou em mim a saudade,
essa pedra que o tempo nunca leva.

—  Daniel André

18 de abril de 2025

Bolero para Dois


 










Eu estava em minha sala.
Noite de lua cheia, de sexta-feira 
daquelas em que as calçadas viram passarelas
de caçadores e presas bem vestidas,
onde os sorrisos piscam como faróis
e os boleros, ah, esses boleros...
beijam os lábios da cidade,
mas só ela decide quem irá beijar.

Enquanto isso, eu 
com meu copo meio cheio
ou talvez meio indiferente 
dançava com as sombras da estante.

Meus discos, soldados do tempo,
ronronavam melodias como gatos de estimação tristes,
sabendo que lá fora o mundo era barulhento demais
para a minha solidão bem afinada.

A lua, minha vizinha de olhar antigo,
espionava pela janela com aquela cara de quem viu
todos os romances acabarem antes do segundo ato.

Fizemos um brinde silencioso:
ela com sua luz pálida, eu com meu uísque morno.
Não houve promessas, nem suspiros.
Só a compreensão de que,
na grande pista de dança do cosmos,
às vezes o melhor par
é a ausência com quem você já se acostumou a dançar.


— Daniel André

16 de abril de 2025

Receita de um Caos Controlado

 

Fui no traficante, jaleco branco, olhar vazio,
“Psiquiatra”, nome chique pra esse tipo de desvio.
Peguei a droga em cinco minutos cravados,
Sem perguntas, sem pudores, só receituários assinados.
 
"Ansiedade, é? Normal nos tempos modernos."
Disse ele, com o tédio de mil invernos.
Me receitou paz em cápsulas, sono em miligramas,
Um ticket direto pras almas que se calam.
 
A sociedade? Um hospício com wi-fi e salário.
Sorrisos filtrados, corações no armário.
Todo mundo fingindo que tá tudo ok,
Com Lexotan no bolso e Rivotril no café.
 
Vivemos entupidos de "cura" prescrita,
Mas ninguém lembra mais como é viver à vista.
Anestesiados, drogados de forma elegante,
Com a bênção do CRM e a farmácia vibrante.
 
Então brinde, cidadão, com seu copo de apatia,
Você venceu o dia... ou ao menos a insônia da noite fria.
Só não se esqueça, no seu transe sereno:
O verdadeiro doente é o sistema, e não o veneno.
 
- Daniel André

12 de abril de 2025

Alma de Água


Minha alma
escorre mansa
como rio que se esqueceu da pressa.

Canta um pássaro,
e o tempo se deita sobre as pedras,
escutando.

As cachoeiras murmuram segredos
em línguas líquidas,
que só o silêncio compreende.

Chove.
E cada gota cai
como se soubesse exatamente onde pertencer.

O petricor sobe do chão
como incenso da terra,
perfume da memória vegetal do mundo.

Entre pedrinhas e espelhos d’água,
sou leve.
Sou líquida.
Sou quase vento 
mas com raízes.

E na ciranda de folhas no céu,
descubro que a paz
que tem som de riacho
e cheiro de depois da chuva.

Daniel André

8 de abril de 2025

Vale Tudo

















Ser honesto no Brasil
é pisar em anzol descalço,
é dar bom dia sorrindo
e ouvir de volta: “seu falso”.

É ver o ladrão engravatado
na capa da revista semanal,
enquanto o pobre é fichado
por roubar pão no sinal.

É voto que some no ar,
é verba que vaza da mesa,
é promessa feita em palanque
com sabor de sobremesa.

A escola com teto rachado,
mas no Senado tem buffet.
O povo jejua esperança,
os ricos brindam com Moët.

Dizem que tudo é “esforço”,
mas o jogo já vem marcado.
Quem nasce longe do berço
vira herói por ter lutado.

Vale a pena? Vale a alma.
Vale a luta com firmeza.
Vale o pouco que se tem
e o muito da nobreza.

Ser honesto virou afronta,
num país de ilusão e eleição.
Mas quem dorme em paz consigo
não precisa de perdão.

Não há cargo, não há grana,
nem medalha de patrão,
que valha mais que a coragem
de quem vive na contramão.

Mesmo cansado,
mesmo calado,
ainda é luta,
e é missão.

Daniel André