Eu era um homem antes da água.
Um homem comum, desses que carregam civilização nos bolsos
e poeira nos pensamentos.
Daí cheguei numa lagoa que parecia inventada.
Intocada como segredo de passarinho,
escondida nas barbas velhas das árvores
barbas tão longas que coçavam o tempo.
Resolvi me desimportar de mim.
Entrei na água.
Era azul de doer ternura.
E o silêncio tinha música de coisa viva
que não precisa de instrumentos pra ser.
Quando mergulhei, minhas lembranças se desmancharam
feito sal em rio profundo.
A terra úmida me segurou as ideias,
a fertilidade das coisas mínimas me explicou
que existência mesmo é esse povo miúdo
que vive de inventar vida sem pedir licença.
Meus ombros viraram barbatanas.
Remei contra minhas velhas dores transparentes
e ouvi a água me dizer, com voz de avô líquido:
“Te ajeita aqui, criatura. A luz é pra todos.”
Eu senti, e não foi sentir de faz-de-conta
as árvores respirando lento ao meu redor,
os galhos finos rezando com dedos verdes,
pássaros roçando nuvens só pra exibir canto,
e insetos fabricando milagres com asas
como quem borda o mundo sem vaidade.
Fiquei plantado. Enraizei.
Cresci pra dentro.
Virei semente que sonha floresta
e floresta que sonha gente.
Agora escuto o pulso do planeta
que não é coração, mas é.
Bate no meio do viver.
Bate dentro de mim.
Foi nessa lagoa antiga
que eu vi.
Que eu senti.
Que eu sorri com leveza de coisa entendida.
E agradeci, baixinho,
por ter me reencontrado com minha primeira mãe:
a Natureza.
- Daniel André

